Sobre a Sexta Palavra do Cristo na Cruz
São Roberto Belarmino
Introdução
Explicação Literal da Sexta Palavra: “Está tudo consumado”.
A sexta palavra que disse Nosso Senhor na Cruz está como que unida à quinta palavra mencionada por S. João. Pois entre o Senhor dizer “Tenho sede”, e tomar o vinagre oferecido, não houve tardança. Acrescenta S. João: “Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 19, 30). Em verdade, nada se pode acrescentar a tais palavras: “Está tudo consumado”, senão que estava a obra da Paixão aperfeiçoada e completa. Impusera Deus Pai duas missões a seu Filho: a primeira, pregar o Evangelho; a segunda, sofrer pela humanidade. Quanto à primeira, já dissera o Cristo: “Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer” (Jo 17, 4). Proferira tais palavras por ocasião do discurso de despedida aos discípulos, na Última Ceia. Já ali cumprira a primeira obra que lhe impusera o Pai Celestial. Quanto à segunda missão, tomar o cálice amargo, estava por se cumprir. Aludira a isso, quando perguntou aos dois filhos de Zebedeu: “Podeis vós beber o cálice que eu devo beber?” (Mt 20, 22); e ainda: “Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42); e em outro passo: “Não hei de beber eu o cálice que o Pai me deu? (Jo 18, 11). Cristo pudera então exclamar ao momento da morte, como remate da missão: Está tudo consumado, pois o cálice do sofrimento foi tomado até às fezes, nada mais me resta senão morrer. E inclinando a cabeça, expirou (Jo 19, 30).
Entretanto, como nem Nosso Senhor, nem São João, mui concisos no que disseram, explicaram o que se cumpriu, temos oportunidade de aplicar a palavra com grande razão e vantagem a diversos mistérios. Santo Agostinho, comentando este passo, refere a palavra ao cumprimento de todas as profecias do Testamento Velho. “No instante que soubera Jesus do cumprimento de todas as coisas, para se cumprirem as Escrituras, disse: “Tenho sede”, e “Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Está tudo consumado” (Jo 19, 28, 30), i. é, o que havia por cumprir estava cumprido. Por isso, conclui-se que Nosso Senhor queria manifestar que o que se predissera por boca dos profetas sobre sua Vida e Morte já estava feito e acabado. Em verdade, todas as predições se comprovaram. Sua concepção: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho” (Is 7, 14). Seu nascimento em Belém: “Mas de ti, Belém Efratá, apesar de seres a menor do clã da família de Judá, de ti sairá aquele que há de governar Israel” (Mq 5, 2). A aparição de uma nova estrela: “De Jacó nascerá uma estrela” (Nm 24, 17). A adoração dos Reis: “Oferecer-te-ão dádivas os reis de Tarsis e das ilhas, e os reis da Arábia e de Sabá trarão presentes” (Sl 71, 10). A pregação do Evangelho: “O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu, e me enviou para evangelizar os pobres, aliviar os aflitos de coração, anunciar a remissão dos cativos e a liberdade aos encarcerados” (Is 61, 1). Seus milagres: “O próprio Deus há de vir e os salvará. Então abrir-se-ão os olhos do cego, e os ouvidos dos surdos. E saltará o coxo como o cervo e desatar-se-á a língua dos mudos” (Is 35, 4-6). O cavalgar sobre o burrinho: “Eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso; ele é simples e vem montado num jumento, no potro de uma jumenta” (Zc 9, 9). Davi no Salmos, Isaias, Jeremias, Zacarias e outros mais predisseram a Paixão como se a testemunhassem. É o significado das palavras de Nosso Senhor, quando dizia estar próxima sua Paixão: “Vede, subamos a Jerusalém, pois lá se há de cumprir o que escreveram os profetas sobre o Filho do Homem” (Lc 18, 31). Do que se havia de cumprir, disse: “Está tudo consumado”, tudo terminado, para que na predição dos profetas encontre-se, a partir de agora, a verdade.
Em segundo lugar, São João Crisóstomo diz que a palavra “Está tudo consumado” manifesta que o poder dado a homens e demônios sobre a pessoa do Cristo acabara-se com sua morte. Quando disse Nosso Senhor aos Sumos Sacerdotes e doutores do Templo “esta é a vossa hora e do poder das trevas” (Lc 22, 53), aludia ele a esse poder. O período durante o qual, com a permissão de Deus, os iníquos se apoderaram do Cristo terminou com a exclamação “Está tudo consumado”, pois a peregrinação do Filho de Deus entre os homens, conforme predissera Baruque, findara: “É ele o nosso Deus, com ele nenhum outro se compara. Conhece a fundo os caminhos que conduzem à sabedoria, galardoando com ela Jacó, seu servo, e Israel, seu favorecido. Foi então que ela apareceu sobre a terra, onde permanece entre os homens.” (Br 3, 36-38). E juntamente com a peregrinação, terminou sua condição de vivente e mortal, por que sentia fome e sede, e dormia, e se fatigava, e sujeitava-se a atritos e flagelos, e a feridas e a morte. Deste modo, quando o Cristo na Cruz exclamou “Está tudo consumado, e inclinando a cabeça expirou”, concluiu-se o caminho daquele que dissera “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai.” (Jo 16, 28). O termo da peregrinação foi como aquilo do profeta Jeremias: “Senhor, esperança de Israel, vós que sois o seu salvador no tempo da desgraça, por que sois qual estrangeiro nessa terra, viajante de uma noite apenas?” (Jr 14, 8). Acabava a sujeição de sua natureza à morte, findara o poder de seus inimigos sobre Ele.
Em terceiro lugar, ultimou o sacrifício dos sacrifícios. Ante o real e verdadeiro Sacrifício, os da Lei Antiga consideram-se como meras sombras e figuras. Disse São Leão: “Atraiste tudo para ti, Senhor, pois quando se rasgou o Véu do Templo, o Santo dos Santos apartou-se dos sacerdotes indignos; as figuras se converteram em verdade, manifestaram-se as profecias, converteu-se a Lei nos Evangelhos”. Mais adiante, continua: “A oblação única de teu Corpo e Sangue é superior à variedade dos antigos holocaustos” (Serm. 8. De Pass. Dom.). Neste único Sacrifício do Cristo, o sacerdote é Homem-Deus, o altar a Cruz, a vítima o Cordeiro de Deus, o fogo para o holocausto a caridade, o fruto do sacrifício a redenção do mundo. O sacerdote, digo, era o Homem-Deus, e nada há de maior: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Sl 109, 4), e com justiça, de acordo com a ordem de Melquisedeque, porque lemos na Escritura que Melquisedeque não tinha pai, nem mãe, nem genealogia, e o Cristo não tinha Pai na terra, nem mãe no Céu, nem genealogia, pois “Quem contará sua geração?” (Is 53, 8). “Eu te gerei antes da aurora” (Sl 109, 3); “saiste desde o princípio, desde os dias da eternidade” (Mq 5, 2). O altar foi a Cruz. Assim como o tempo que o Cristo sofreu sobre o madeiro era sinal de grande ignomínia, assim agora está dignificada e enobrecida, e no último dia aparecerá no céu mais resplandecente que o sol. A Igreja aplica à Cruz as palavras do Evangelista: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem.” (Mt 24, 30), já que canta “O sinal da cruz no céu aparecerá, quando vier o Senhor para julgar”. São João Crisóstomo confirma essa opinião, e observa que quando “o sol se escurecer, e a lua não tiver claridade” (Mt 24, 29), a Cruz há de ser vista mais brilhante que o sol no esplendor do meio-dia. A vítima foi o Cordeiro de Deus, totalmente inocente e imaculado, de quem fala Isaias: “Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca.)” (Is 53, 7), e também o Precursor: “Eis aqui o Cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29), e por último São Pedro: “Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a prata e o ouro, que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso sangue de Cristo, o Cordeiro imaculado e sem defeito algum” (1Pd 1, 18-19). No Apocalipse, chamam-no também de “o cordeiro imolado desde o princípio do mundo” (Ap 13, 8), porque o mérito do sacrifício já o previra Deus, em benefício daqueles que viveram antes da vinda do Cristo. O fogo do holocausto, que o consome e perfaz, é o imenso amor que ardeu no Coração do Filho de Deus, qual ardente fogueira que as muitas águas da Paixão não extinguiram. Finalmente, o fruto do Sacrifício foi a expiação dos pecados de todos os filhos de Adão, i. é, a reconciliação do mundo com Deus. Na sua primeira epístola, disse São João: “Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.” (1Jo 2, 2), o que é dizer, com outras palavras, a ideia de São João Batista: “Eis aqui o Cordeiro de Deis, eis o que tira o pecado do mundo” (Jo 1 ,29). Aparece aqui um embaraço: como é possível o Cristo ser ao mesmo tempo sacerdote e vítima, posto que fosse dever do sacerdote matar a vítima? Certamente o Cristo não se matou a si, nem havia de fazê-lo, pois se o fizesse, cometeria um sacrilégio e não ofereceria um sacrifício. É verdade que o Cristo não se matou a si, mas ainda assim ofereceu um sacrifício real, porque pronta e alegremente se ofereceu a si à morte por glória de Deus e salvação dos homens. Nem soldados o prenderiam, nem cravos trapassariam suas mãos e pés, nem a morte – não obstante tivesse pregado à Cruz – se apoderaria dele se ele assim não o quisesse. Em consequência, com muita propriedade disse Isaias: “Ofereceu-se porque o quis” (Is 53, 7); e disse Nosso Senhor: “O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo.” (Jo 10, 17-18). Com mais claridade, afirma São Paulo: “Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 2). Portanto, de modo maravilhoso dispôs-se que todo o mal, e todo o pecado, e todo o crime da condenação à morte do Cristo recaissem sobre Judas e os judeus, sobre Pilatos e os soldados. Eles não ofereciam sacrifício, senão que foram culpados de sacrilégio, e não mereciam o título de sacerdotes, senão que de sacrílegos. Toda a virtude, e toda a santidade, e toda a obediência pertencem ao Cristo, que se ofereceu a si como vítima a Deus, sofrendo pacientemente a morte, e morte de Cruz, para apaziguar a ira do Pai, reconciliar a humanidade com Deus, saciar a justiça divina, e salvar a raça decaida de Adão. São Leão expressa com elegância e economia este pensamento: “Ele permitiu as mãos impuras se voltassem contra si, e já então se convertiam em colaboradores da Redenção no momento em que cometiam um abominável pecado”.
Em quarto lugar, por morte do Cristo findou-se a batalha entre o Salvador e o príncipe deste mundo. Na alusão desta luta, valeu-se o Senhor destas palavras: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo. E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 31-32). Foi batalha de foro, e não de milícia. Foi batalha entre dois demandantes, e não de dois exércitos rivais. Satanás disputou com o Cristo a possessão do mundo, e o domínio sobre a humanidade. Por muito tempo, o demónio lançara a mão com dolo para possui-lo, porque vencera o primeiro homem, e dele e seus descendentes fizera-os escravos. Por essa razão, chama S. Paulo aos demónios de “principados e potestades, príncipes deste mundo tenebroso” (Ef 6, 12). Como disséramos, até o mesmo Cristo chama ao demónio “príncipe deste mundo”. Eis que o demónio não quisera apenas ser príncipe, mas arvorar-se em deus deste mundo, como na exclamação do Salmo: “Porque os deuses dos pagãos, sejam quais forem, não passam de ídolos. Mas foi o Senhor quem criou os céus” (Sl 95, 5). Nos ídolos dos gentios, adorava-se Satanás, e lhe rendiam culto de sacrifício de cordeiros e vitelos. Por outro lado, o Filho de Deus, verdadeiro e legítimo herdeiro do universo, demandou para si o principado deste mundo. A sentença da lide deu-se na Cruz, e o juizo se pronunciou em favor de Jesus Cristo, porque na Cruz expiou à saciedade os pecados do primeiro homem e seus filhos. A obediência do Filho ao Pai Eterno superou a desobediência do servo ao Senhor, e a humildade da morte do Filho de Deus na Cruz redundou em maior honra do Pai, que o orgulho do servo em sua desonra. Assim Deus, nos méritos de seu Filho, se reconciliou com a humanidade, arrancando-se ao poder do demónio a mesma humanidade, e “nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado” (Cl 1, 13).
Há outra razão, a que aduz São Leão, conforme dá-la-emos com suas próprias palavras: “Se o orgulhoso e cruel inimigo conhecesse o plano da misericórdia de Deus, reprimira as paixões dos judeus, e lhes não inculcara o ódio injusto por que perderia o domínio sobre os cativos, ao atacar em falso a liberdade daquele que nada devia”. Esta consideração é de muitíssimo peso. Era justíssimo que o demónio perdesse toda a autoridade sobre os escravos do pecado, porque se atrevera a pôr as mãos sobre o Cristo, que não era escravo seu, nem havia pecado, e todavia perseguira até à morte. Ora se este é o caso, se é terminada a batalha, se é vitorioso o Filho de Deus, e se “quer que todos os homens se salvem” (1Tm 2, 4), como é possivel tantos estarem submissos ao poder do demónio nesta vida, e atormentados no inferno, na que há de vir? Respondo-o com uma palavra: querem-no. Cristo saiu vitorioso da disputa, outorgando à raça humana dois favores inefáveis. Primeiro, abriu aos justos a porta dos céus, que estavam cerradas desde a queda de Adão até aquele dia, em que pronunciou a justificação do ladrão, alcançada por meio da fé, da esperança e da caridade, pelos méritos de seu sangue: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Exultante, clama a Igreja: “Tu, vitorioso sobre o aguilhão da morte, abriste aos crentes o Reino dos Céus”. Segundo, instituiu os Sacramentos, que têm poder de perdoar pecados e conferir a graça. Envia os pregadores da Palavra a toda parte do mundo, a proclamar: “Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16, 16). Assim Nosso Senhor franqueou o caminho para todos adquirirem a gloriosa liberdade dos filhos de Deus, e se há quem se recuse a nele entrar, morrem pela própria culpa, e não pela míngua do poder ou da vontade do Redentor.
Em quinto lugar, a palavra “Está tudo consumado” é possível aplicá-la ao término do edifício, i. é, a Igreja. Cristo Nosso Senhor usa dela, ao se referir a um edifício: “Hic homo coepit aedificare et non potuit consummare, Este homem principiou a edificar, mas não pode terminar” (Lc 14, 30). Ensinam os Padres que o estabelcimento das fundações da Igreja deu-se no batismo do Cristo, e o término da construção na sua morte. Epifánio, no terceiro livro contra os herejes, e Santo Agostinho, no último da Cidade de Deus, mostram que Eva, feita da costela do Adão adormecido, faz figura da Igreja, feita da costela do Cristo adormecido na morte, advertindo que, não sem razão, o livro do Génesis usa o termo “construiu”, e não “formou”. Santo Agostinho (“De Civit.”, I. 27, c. 8), com as palavras do Salmista, prova que o edificio da Igreja começa no batismo do Cristo: “Ele dominará de um ao outro mar, desde o grande rio até os confins da terra.” (Sl 71, 8). O reino do Cristo, a Igreja, se iniciou no batismo recebido das mãos de São João, consagrou as águas e instituiu o sacramento que é a sua porta de entrada; foi nesse momento que se escutou claramente a voz do Pai nos céus: “Eis meu Filho muito amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Desde então Nosso Senhor começou a pregar e reunir discípulos, que foram os primeiros filhos da Igreja. Todos os sacramentos tiram sua eficácia da Paixão do Cristo, apesar de terem aberto o costado de Nosso Senhor quando já estava morto, fluindo daquela chaga sangue e água, os tipos dos dois principais sacramentos da Igreja. Fluirem sangue e água das costelas do Cristo, estando já morto, era sinal dos sacramentos, e não sua instituição. Podemos concluir que se consumou a edificação da Igreja quando Cristo disse: “Está tudo consumado”, porque só lhe restava morrer, o que logo acontenceu, já que pagara o preço de nossa redenção.
Capítulo I
O primeiro fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz.
Quem com atenção reflita a sexta palavra, há de obter para si muitos ensinos dessa consideração. Santo Agostinho tira útil lição do fato de que a palavra “Está tudo consumado” mostra o cumprimento de todas as profecias acerca de Nosso Senhor. Assim como estamos certos da veracidade das profecias passadas, assim deveríamos ter a mesma certeza daquilo que os Profetas profetizaram e ainda não se cumpriu. Os Profetas não falavam o que queriam, mas o que lhes insuflava o Espírito Santo, e como o Espírito é Deus, o qual não engana nem extravia, deveríamos todos nós estar confiados de que o que se predisse sucederá, se é que já não sucedeu. “Porque até agora, dizia Santo Agostinho, tudo se realizou, por isso o que há de se cumprir sucederá. Conservemos um reverente temor pelo Dia do Juizo, pois nele virá o Senhor. Ele, que viera como criança humilde, virá novamente como Deus poderoso”. Mais fortes razões temos que os profetas do Testamento Velho para não fraquejar na fé, ou na crença daquilo que há de vir. Quem viveu antes do advento do Cristo estava obrigado a crer, sem prova alguma, em várias coisas das quais agora temos abundantes testemunhos, e por o que já se cumpriu, deduz-se facilmente que as outras profecias se cumprirão. Os coetâneos de Nóe escutaram notícias sobre o Dilúvio Universal, não só pelos lábios dos profetas de Deus, senão que também no observá-lo a trabalhar com diligência na construção da Arca; e não obstante, como jamais ocorresse um dilúvio ou o que o valesse, não se convenceram; em consequência, a ira de Deus os encontrou desprevenidos. Assim como sabemos do cumprimento da profecia de Noé, assim não devemos obstar a crença de que o mundo e tudo que tanto estimamos será um dia consumido em fogo. Todavia, existem uns poucos que têm nisto a fé mui avivada, como que para já ir se desprendendo a si mesmos das coisas perecíveis, e apontar seus corações aos gozos celestiais, que são reais e eternos.
Profetizara o mesmo Cristo os terrores do Último Dia, por isso são totalmente inescusáveis os que não se convençam de que, como se cumpriram as antigas profecias, outras também se cumprirão. Aqui as palavras do Cristo: “Assim como foi nos tempos de Noé, assim acontecerá na vinda do Filho do Homem. Nos dias que precederam o dilúvio, comiam, bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E os homens de nada sabiam, até o momento em que veio o dilúvio e os levou a todos. Assim será também na volta do Filho do Homem. Vigiai, pois, porque não sabeis a hora em que virá o Senhor” (Mt 24, 37-39, 42). Disse São Pedro: “Entretanto, virá o dia do Senhor como ladrão. Naquele dia os céus passarão com ruído, os elementos abrasados se dissolverão, e será consumida a terra com todas as obras que ela contém” (2Pd 3, 10). Alguns hão de dizer que tudo isso anda mui distante. Concedamos, estão de fato mui distantes, mas se estão, certamente não está o dia da morte: a hora é incerta, mas certo é que no juizo particular cada qual há de prestar contas de cada palavra ociosa. E se é assim para a palavra ociosa, qual não vai ser para as palavras pecaminosas, e as blásfemas, tão usuais? Se havemos de prestar contas de cada palavra ociosa, qual não vai ser a das ações, dos roubos, adultérios, fraudes, assasinatos, injustiças e outros pecados mortais? Embora não creiamos no cumprimento das promessas futuras, o cumprimento daquelas passadas agravarão a culpa. Não basta crer, a menos que a fé eficazmente mova a vontade para fazer ou evitar o que o entendimento ensina deva ser feito ou evitado. Se declara um arquiteto que a casa está a ponto de ruir, creem os moradores na palavra dele, mas ainda assim não abandonam a casa, e terminam sepultados sob as ruinas, que se dirá à gente de tal fé? A eles dirão, junto com o Apóstolo: “Proclamam que conhecem a Deus, mas na prática o renegam” (Tt 1, 16). Que se diria se um médico ordenasse ao paciente a abstinência de vinho, e o paciente, assumindo como bom o conselho, continua não obstante a tomar a bebida, e ofende-se caso não lha deem? Não se há de dizer que estava louco o paciente, e que na verdade não confiava no médico? Quisera não houvessem tantos cristão a professar a crença nos juizos de Deus e demais coisas, e ao mesmo tempo a contradizer com condutas suas palavras!
Capítulo II
O segundo fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz.
Pode-se tirar outro lucro da segunda interpretação que demos à palavra: “Está tudo consumado”. Na companhia de Crisóstomo, dizemos que por sua morte o Cristo encerrou sua estada laboriosa entre nós. Não há negar que sua vida mortal foi duríssima, mas a dureza compensou-se com sua brevidade, fruto, glória e honra. Durou trinta e três anos. Que é um lavor de trinta e três anos, se se compara ao descanso eterno? Trabalhou Nosso Senhor com fome e sede, em meio a penalidades, e a insultos inumeráveis, e a golpes, feridas, e à mesma morte. Mas agora se refresca na fonte da felicidade, e felicidade eterna. Foi humilhado, e num curto intervalo foi tomado “por opróbrio de todos e a abjeção da plebe” (Sl 21, 7), mas “Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos” (Fl 2, 10). Por outro lado, os pérfidos judeus se regozijaram durante uma hora nos sofrimentos de Cristo. Durante uma hora, desfrutou Judas o prezo da avareza: umas poucas moedas de prata. Por uma hora, Pilatos se glorificou, pois não perdera a amizade de Tibério, e reganhara aquela de Herodes. Mas por quase mil anos, estão padecendo os tormentos do inferno, e seus gritos desesperados hão de se escutar sempre e para sempre.
Da sua miséria os servos todos de Deus aprendem quão bom e frutuoso é o serem humildes, dóceis, pacientes, e nesta vida carregarem sua Cruz e seguirem ao Cristo como guia, e de modo algum invejar os que parece estão alegres neste mundo. As vidas do Cristo e seus apóstolos e mátires são um verdadeiro comentário às palavras do Senhor dos Senhores: “Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, bem-aventurados os que choram, bem-aventurados os mansos, bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, bem-aventurados os misericordiosos, bem-aventurados os puros de coração, bem-aventurados os pacíficos, bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!” (Mt 5, 3-10). E por outro lado, “Ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação! Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome! Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis!” (Lc 6, 24, 25).
Embora nem as palavras, nem a vida e morte do Cristo sejam do mundo entendidas ou seguidas, qualquer que deseje afastar os quefazeres do mundo, entrar em seu coração, meditar seriamente e se dizer a si: “Escutarei o que diz o Senhor Deus” (Sl 84, 9), e assim importuna a seu Divino Senhor com humilde oração e lamento d’alma, compreendera sem dificuldade a verdade, e a verdade o libertará dos erros, e o antes impossível tornar-se-á fácil.
Capítulo III
O terceiro fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz.
O terceiro fruto a se colher da consideração da sexta palavra é a obrigação de apreender a sermos sacerdotes espirituais, “para oferecer vítimas espirituais, agradáveis a Deus” (1Pe 2, 5), como disse São Pedro, ou como adverte São Paulo, para “oferecer” nossos “corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este” o nosso “culto espiritual” (Rm 1, 12). Pois se a palavra “Está tudo consumado” mostra-nos o cumprimento do sacrifício do Sumo Sacerdote na Cruz, justo é e próprio que os discípulos do Deus crucificado, anelantes ao máximo de imitar ao Senhor, ofereçam-se a si como sacrifício a Deus, na medida de sal debilidade e pobreza. Certamente, dissera São Pedro que todos os cristão são sacerdotes, não como os que foram ordenados por bispos da Santa Igreja Católica para oferecer o Sacrifício do Corpo e Sangue do Cristo, senão enquanto sacerdotes espirituais para oferecer vítimas espirituais; não se trata de ovelhas e bois, ou pombas e rolas, como se lê no Testamento Velho, nem da Vítima do Testamento Novo, o Corpo do Cristo na Sagrada Eucaristia, mas vítimas místicas que todos podem oferecer, como a oração, o louvor, as boas obras, os jejuns e as obras de misercórdia, como disse São Paulo: “Por ele ofereçamos a Deus sem cessar sacrifícios de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram o seu nome” (Hb 13, 15). Na Epístola aos Romanos, diz o mesmo Apóstolo com encarecimento que ofereçamos a Deus o sacrifício místico de nossos corpos, conforme os sacrifícios da Antiga Lei, ordenados por quatro decretos. Era o primeiro que a vítima fosse algo consagrado a Deus, por que era ilegítimo dar-se-lhe uso profano. Era o segundo que a vítima seria criatura vivente, como uma ovelha, cabra ou vitelo. Era o terceiro que deveria ser consagrado, ou seja, purificado, pois consideravam os judeus alguns animais puros e outros não. Ovelhas, bois, cabras, rolas, pardais e pombas eram puros, enquanto o cavalo, o leão, o burro, a águia, o corvo, entre outros, eram impuros. Era o quarto que a vítima se havia de queimar, e recender um perfume suave. Enumera tudo isso o Apóstolo: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1). Entendo que o Apóstolo não nos está exortando a um sacrifício propriamente dito, como se quisesse fossem nossos corpos mortos e queimados, qual os das ovelhas oferecidas em holocausto, senão ao sacrifício místico e racional, àquele semelhante, porém não igual; espiritual, já não corporal. Para tanto, exorta-nos o Apóstolo à imitação do Cristo, já que ele ofereceu na Cruz em nosso benefício o Sacrifício de seu Corpo, com morte real e verdadeira, para que em sua honra ofereçamos nossos corpos como vítimas vivas, santas e perfeitas, agradáveis a Deus, para serem espiritualmente mortas e queimadas.
Agora daremos explicação dos quatro decretos que ordenam os sacrifícios judeus. Em primeiro lugar, nossos corpos haverão de ser vítimas consagradas a Deus, em honra do Eterno. Não devemos considerar o corpo propriedade nossa, mas de Deus, a quem nos consagramos no Batismo, e nos comprara por grande preço, como disse o Apóstolo aos Coríntios. Tampouco sejamos meras vítimas mortas, mas vivas para a vida da graça e o Espírito Santo. Os que matou o pecado não são vítimas de Deus, senão que do demónio, que mata as almas e se regozija nessa destruição. Nosso Deus, fonte da vida agora e sempre, não ofereceria ao Cristo depojos fétidos, que só servem de serem lançados aos animais. Em segundo lugar, temos de ter cuidado em preservar a vida da alma para ser possível oferecer o “culto espiritual”. Não basta à vitima o estar viva, há de ser santa. Um “sacrifício vivo” e “santo”, diz São Paulo. A oblação de vítimas puras era um sacrifício santo. Como disséramos, alguns quadrúpedes eram puros – ovelhas, cabras e bois – como eram-no algumas aves –rolas, pardais e pombas. A primeira classe de animais significam a vida ativa, a última a contemplativa. Por conseguinte, se os que entre os fieis levam vida ativa desejam oferecer a si como vítimas santas a Deus, hão de imitar a simplicidade e mansidão do cordeiro, que não conhece vingança; a laboriosidade e sisudez do boi, que não busca repouso nem correrias à toa d’aqui pr’acolá, senão que suporta a carga, arrasta o arado e trabalha assiduamente no cultivo da terra; e finalmente, a agilidade da cabra no trepar as montanhas, e sua rapidez no lobrigar objetos ao longe. Não se devem satisfazer apenas na mansidão, ou no cumprimento de certas tarefas, mas altear os corações em frequêntes orações e contemplar as coisas de cima. Se não, como podem obrar suas ações por glória de Deus e fazê-las ascender como o incenso do sacrifício perante ele, se só raramente ou nunca pensam em Deus, nem o buscam ou, por meio da meditação, ardem de amor por ele? A vida ativa do cristão tem de estar dalgum modo ligada à contemplativa, e a contemplativa à ativa. Os que não seguem os exemplos dos bois, dos cordeiros e das cabras em seu contínuo e útil trabalho ao Senhor, mas apenas buscam o próprio conforto temporal, não oferecerão a Deus uma vítima santa, antes se parecerão com animais ferozes e carnívoros, como lobos, cães, ursos e corvos, que tem por deus o estómago, e seguem as pegadas do “leão que ruge”, que anda “buscando a quem devorar” (1Pd 5, 8). Os que buscam a vida contemplativa e buscam se oferecer como vítimas vivas e santas a Deus há de imitar a solitude da rola, a pureza da pomba, a prudência do pardal. A solitude da rola se aplica principalmente aos monges e ermitãos, que não têm comércio com o mundo, de todo dedicados a contemplar a Deus e lhe entoar louvores. A pureza e a fecundidade da pomba é necessária aos bispos e sacerdotes, que têm comércio com os homens, precisando engendrar e criar filhos espirituais; lhes será dificil tal imitação, a menos que se voltem amiude ao país celestial por meio da contemplação, e por meio da caridade condescendam em socorrer as necessidades dos homens. Existe o perigo de dedicarem-se totalmente à contemplação, e não gerar filhos espirituais, ou de voltarem-se com tantas ganas ao trabalho que terminem por se contaminar com desejos mundanos, e não obstante estejam ansiosos em salvar as almas alheias, convertam-se a si – não o queira Deus – em náufragos. A prudência do pardal é necessária aos contemplativos tanto quanto aos ativos no ministério. Existem os pardais de vizinhança e os de casa. Os de vizinhança são expertos em evitar as redes e alçapões que lhe armam; já os de casa, que vivem próximos ao homem, nunca se convertem em amigos do homem, e só a custo são capturados. Assim os cristãos, e de maneira especial os sacerdotes e monges, hão de imitar a prudência do pardal para evitar cair nas redes e alçapões armados pelo diabo, e quando estiverem no trato com homens, fá-lo-ão apenas para benefício do próximo, evitando qualquer familiaridade, especialmente com mulheres, fugindo dos circunlóquios, declinando dos convites, ausentando-se de autos ou teatros.
O último decreto a ordenar os sacrifícios era de que a vítima não fosse apenas viva e santa, senão que também agradável, i. é, de suave odor, de acordo com o que diz a Escritura: “O Senhor respirou um agradável odor” (Gn 8, 21), e “Cristo nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 2). Era mister de que a vítima, para recender o aroma tão agradável a Deus, estivesse morta e queimada. Assim acontece no sacrifício místico e racional de que vimos falando, quando a concupiscência da carne está completamente subjugada e abrasada no fogo da caridade. Nada tão eficaz, presto e perfeito para mortificar a concupiscência da carne que um sincero amor de Deus, pois ele é o Rei e Senhor de todos os afetos do coração, os quais por ele são governados e dele dependem, sejam o temor ou a esperança, o desejo ou o ódio e a ira, ou qualquer inquietude da mente. Por isso, lucra o amor um amor maior ainda, e em consequência, quando o amor de Deus pousa e permanece no coração do homem e o incendeia em chamas, todos os desejos carnais se consomem nelas, completamente subjugados, não sendo mais ocasião de inquietude. Para tanto, ascendem dos corações aspirações ardentes e orações fervorosas como incenso ante o trono de Deus. Este é o sacrifício que pede Deus de nós, e o a que nos exorta o Apóstolo é o estar preparadíssimos para oferecê-lo.
São Paulo usa um argumento fortíssimo para persuadir-nos disso, assim como é em si mesmo, duro e cheio de dificuldades. Eis as palavras do argumento: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo” (Rm 12, 1). No texto grego encontramos “misericórdias” em lugar de “misericórdia”. Quais e quantas são as misericórdias de Deus, para que o Apóstolo nos exorta? Em primeiro lugar, está a criação, pela qual fóramos feitos do nada. Em segundo lugar, apesar de o Deus Todo-Poderoso não ter de nós nenhuma necessidade, constituira-nos seus servos, porque deseja que façamos algo de que possa recompensar-nos. Em terceiro lugar, criou-nos à sua imagem, e capazes de conhecê-lo e amá-lo. Em quarto lugar, adotou-nos em Cristo como filhos e co-herdeiros de seu Filho Unigénito. Em quinto lugar, puséra-nos como membros de sua Esposa, daquela Igreja da qual é cabeça. Em último lugar, se ofereceu a si na Cruz “como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 2), para nos redimir da escravidão e lavarmos nossa iniquidade, “para apresentar a si mesmo uma Igreja toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27). Estas são as misericórdias de Deus, às quais nos exorta o Apóstolo, como se dissesse: “Derramara o Senhor sobre vós tantas graças imerecidas e inesperadas, e ainda tendes como coisa dificultosa o vos oferecerdes a Deus como vítimas vivas, santas e racionais? Em verdade, longe de ser difícil, haveria de parecer a qualquer um que atentasse a todas as circunstâncias fácil, leve e prazeroso servir a um Deus tão bom de todo nosso coração e o tempo todo, e segundo o exemplo do Cristo, oferecer-nos inteiramente a ele como uma vítima, uma oblação, um holocausto de suave odor.”
Capítulo IV
O quatro fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz
Do quarto fruto se pode colher uma quarta explicação da palavra “Está tudo consumado”. Se é verdade, como certamente é, que Deus nos libertara da servidão do diabo pelos méritos do Cristo, arvorando-nos ao reino de seu amado Filho, perguntemos e insistamos nesta indagação até que se encontre a razão por que tanta gente prefere a escravidão do inimigo da humanidade ao serviço do Cristo, nosso amantíssimo Senhor, e assim arder para sempre nas labaredas do inferno, junto de Satanás, em vez de reinar felicíssimos na glória eterna junto de Nosso Senhor Jesus Cristo. A única razão que encontro é a de que o serviço de Cristo se inicia com a Cruz. É mister crucificar a carne com seus vícios e concupiscências. Este amargo trago, cálice de fel, naturalmente produz no homem frágil náuseas, e no mais das vezes é a só razão por que prefere a escravidão das paixões a ser o Senhor delas por tal remédio. Um homem sem razão não passa de um bruto, pois despojado da razão resta governado por seus desejos e apetites. Contudo, como é o homem dotado de razão, por certo sabe ou deveria saber que aquela pessoa a quem se ordena crucificar a carne e seus vícios e concupiscências há de insistir na guarda do preceito, particularmente porque a graça de Deus o assiste, e Nosso Senhor, como bom médico, prepara essa poção amarga de tal sorte que se possa beber sem esforço. Mais ainda, se dirigissem exclusiva e individualmente a nós as palavras “Toma a tua cruz, e segue-me”, talvez tivéssemos escusa para duvidar e desconfiar de nossas forças, não nos atrevendo a encostar numa cruz cujo peso nos esmagaria. Entretanto, como não apenas homens, senão que também crianças de tenra idade carregaram a Cruz do Cristo, e com que paciência e valentia!, e crucificaram a carne com seus vícios e concupiscências, por que temeríamos? Por que duvidaríamos? Esse argumento venceu Santo Agostinho, que num instante dominou as concupiscências que por anos considerou indomáveis. Pôs diante dos olhos a vida de homens e mulheres castos, e se disse a si: “Por que não és capaz de fazer o que tantos homens e mulheres fizeram, sem que confiassem na própria força, mas na do Senhor seu Deus?”. O que se disse acerca da concupiscência da carne, diga-se igualmente da concupiscência dos olhos, que é a avareza e o orgulho da vida. Não existe vício que, com ajuda de Deus, não se sobrepuje, e não há razão para temer a recusa de Deus, que sempre nos há de ajudar. Disse São Leão: “É com justiça que insiste Deus Todo-Poderoso que guardemos os mandamentos, pois ele nos apercebe com sua graça”. Miseráveis, loucas e nécias são as almas que preferem arrastar cinco juntas de bois a mando de Satanás, para com trabalhos e penas serem escravizadas pelos sentidos e finalmente torturadas com seu general pela eternidade, a submeterem-se ao jugo leve e suave do Cristo, encontrando descanso de alma nesta vida, e na próxima uma coroa eterna de interminável glória junto a seu Rei.
Capítulo V
O quinto fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz
Desta palavra se colhe um quinto fruto, já que podemos aplicá-la à edificação da Igreja, aperfeiçoada na Cruz, como outra Eva formada das costelas de outro Adão. Este mistério nos havia de ensinar a amar a Cruz, honrar a Cruz, e estar estreitamente unidos a Cruz. Quem não ama a terra natal de sua mãe? Os fieis têm todos extraordinária veneração pelo lugar sagrado de Loreto, porque é onde nasceu a Virgem Mãe de Deus, e onde em seu ventre virginal concebeu ela a Nosso Senhor Jesus Cristo, qual o aviso do anjo a São José: “o que nela foi concebido vem do Espírito Santo” (Mt 1, 20). Assim a Santa Igreja Católica, sabedora do lugar de seu nascimento, chanta a Cruz em todo lugar, e em todo lugar a exibe. Ensinaram-nos a nós a fazer o mesmo, vemo-la nas igrejas e nas casas. Não confere a Igreja nenhuns sacramentos sem a presença da Cruz, nem a nada abençoa sem o sinal da Cruz, e nós mesmos, os filhos da Igreja, manifestamos o amor à Cruz quando pacientemente superamos as adversidades por amor a Deus crucificado. É isto gloriar-se na Cruz, é isto cumprir o dito pelo Apóstolo: “Eles saíram da sala do Grande Conselho, cheios de alegria, por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 5, 41). São Paulo inculca-nos o que ele entende por gloriar-se na Cruz, quando afirma: “Não só isso, mas nos gloriamos até das tribulações. Pois sabemos que a tribulação produz a paciência, a paciência prova a fidelidade e a fidelidade, comprovada, produz a esperança. E a esperança não engana. Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 3-5). Novamente, na Epístola aos Gálatas: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6, 14). Eis o triunfo da Cruz, quando o mundo e suas pompas e prazeres está morto para a alma cristã, amorosa de Cristo crucificado, e a alma cristã está morta para o mundo, amando as tribulações e o desapego, e odiando os prazeres da carne e o aplauso vão dos homens mundanos. Deste modo, o verdadeiro servo de Deus é tão acabado que dele também se pode afirmar: “está consumado”.
Capítulo VI
O sexto fruto a se colher da consideração da sexta palavra do Cristo na Cruz
O último fruto da consideração desta palavra colher-se-á da perseverança de Nosso Senhor na Cruz. Na palavra “Está tudo consumado” ensina-se a que altura de perfeição Nosso Senhor levou a obra da Paixão, tanto que do começo ao fim nada faltou: “Perfeita é a sua obra” (Dt 32, 4). Assim como completou Deus Pai a obra da criação no sexto dia e no sétimo descansou, assim completou o Filho de Deus a obra da redenção no sexto dia e descansou no sono da morte no sétimo. Em vão provocavam-no os judeus: “Se é rei de Israel, desça agora da cruz e nós creremos nele!” (Mt 27, 42). Com mais veras exclamava São Bernardo: “Porque era rei de Israel, não abandonara o emblema de sua realeza. Não nos porá nenhuma desculpa à língua quando falarmos da perseverança, a qual é a só coroada, nem entorpecerá a língua dos pregadores, nem mudos os lábios dos misericordiosos, nem vazias as palavras daqueles cujo dever é apregoar: não abandonem a cruz, pois se isso fosse possível responderia individualmente cada uma das almas: Abandonei a cruz, porque desertou o Cristo da sua primeiro”. Cristo perseverou na Cruz até à morte, para perfeccionar até ao fim a sua obra, e deixar-nos exemplo de perseverança digno de admiração. É certamente fácil permanecer no cómodo, ou perseverar no agradável, mas é mui agro tomar o lugar dalguém quando há tanta dor a ser consolada, ou expectativa a ser ansiada. Se pudéssemos entender a razão que induziu a Nosso Senhor perseverar na Cruz, deveríamos já estar de todo convencidos em transportar nossa cruz com constância e coragem até à morte. Se fitarmos os olhos apenas na Cruz, impregnamo-nos de horror à vista dum tal instrumento de morte. Contudo, se fitarmos os olhos naquele que nos exorta a carregar a Cruz, e no lugar para onde ela nos conduzirá, e no fruto dela, o que era dificuldades e obstáculos tornar-se-á facilidade e gozo perseverantes, seja no arrastá-la, seja no estar pregado a ela.
Por que perseverou o Cristo pregado à Cruz até à morte sem lamúria ou murmuração? A primeira razão é o amor que sentia por seu Pai: “Não hei de beber eu o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18, 11). O Cristo amou ao Pai, e o Pai ao Filho Unigénito com amor igualmente inefável. Quando vira o cálix que seu bondosíssimo e amorosísmo Pai lhe ofereceu, só pôde concluir que tal se lhe oferecera pela melhor das razões, por isso não nos maravilha o havê-lo instantemente tomado até ao fim. O Pai mandara fazer uma festa de bodas ao Filho, dando-lhe por esposa uma Igreja disforme e desfigurada, que se limparia e aformosearia em banhos de Sangue, saindo dali “sem mancha nem ruga” (Ef 5, 27). Por sua vez, o Cristo se enamorou da Esposa escolhida pelo Pai, não exitando em derramar seu Sangue para torná-la formosa e encantadora. Se labutou Jacó sete anos nos tratos do rebanho de Labão, padeceu calor e frio e insónia para desposar Raquel, e segundo ele os sete anos de pastor escoaram tão rapidamente que “lhe pareceram dias, tão grande era o amor que lhe tinha” (Gn 29, 20), e tanto assim mais outros sete que padeceu, não é espantoso que o Filho de Deus desejasse fosse pregado à Cruz durante três horas em favor de sua Esposa, a Igreja, aquela que seria a mãe duma multidão de santos e doutros filhos de Deus. Mais ainda, ao beber o amargo cálix da Paixão, não motivava-o apenas o Amor ao Pai, senão que também a glória exaltada e a felicidade ilimitada e eterna que nos asseguraria por meio da Cruz. “E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor” (Fl 2, 8-11).
Acrescente-se ao exemplo manifesto do Cristo o dos Apóstolos, para que os imitemos. Na Epístola aos Romanos, São Paulo após enumerar suas cruzes e as dos companheiros pergunta: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? Realmente, está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte o dia inteiro; somos tratados como gado destinado ao matadouro”, após o quê ele mesmo refuta: “Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou” (Rm 8, 35-37). Para vencer as cruzes, é mister não nos ocuparmos no que querem elas significar, mas encorajar-nos por amor daquele Deus que tanto nos amou e entregou seu Filho Único em nosso resgate, ou ainda conservar fitos os olhos naquele Filho de Deus que nos amou e “se entregou por nós” (Tt 2, 14). Na Epístola aos Coríntios, afirma o mesmo Apóstolo: “Estou cheio de consolação, transbordo de gozo em todas as nossas tribulações” (2Cor 7, 4). Quando apareceram tais consolação e gozo que o fazem como que impassível à aflição? Dá-nos ele a resposta: “A nossa presente tribulação, momentánea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável” (2Cor 4, 17). Portanto, a contemplação da prometida coroa de glória, com o pensamento fito nela, igualava-se a todas as provações desta vida momentánea e banal. “Que perseguição, clama São Cipriano, prevalecerá ante tais pensamentos?” (Cyprian. Lib. de Exhort. Martyr.). Como segundo modelo tomaremos a conduta de Santo André, que na cruz não enxergou o intrumento em que pregá-lo-iam durante dois dias, senão que abraçou-a como um amigo, tanto que, quando os espectadores queriam-no descer, de modo algum consentia, pois que unido a ela desejava permanecer até à morte – sinal de apóstolo iluminado e de varão cheio do Espírito Santo.
Os cristãos todos podem tirar do exemplo do Cristo e de seus apóstolos o como se comportarem quando já não seja possível descer da cruz, i. é, quando não se podem libertar dalguma aflição particular nem sofrer sem pecar. Em primeiro lugar, compara-se a vida do religioso atado pelos votos de pobreza, castidade e obediência a um martírio silencioso. Se o esposo se casou com uma esposa irascível, áspera e mal-humorada, ou a esposa com um homem cuja témpera e caráter não são menos árduos de lidar, como era a disposição do pai de Santo Agostinho e esposo de Santa Mónica, conforme está nas “Confissões”, tira-se daí que essa cruz há de ser carregada com valentia, pois a união é indissolúvel. Os escravos que perderam a liberdade, os condenados à prisão perpétua, os enfermos padecentes de enfermidades incuráveis, os pobres tentados a roubar para seu alívio imediato, todos e cada um devem dirigir os pensamentos não à cruz que arrastam, mas àquele que a impôs sobre eles, isso os que desejem perseverar conservando a paz interior e lucrando a imensa recompensa prometida no céu, após cessarem todos os sofrimentos. Sem dúvida é Deus que nos aflige com cruzes, ele, nosso amantíssimo Pai; e sem ele nem a alegria nem a tristeza podem habitar em nós. É também sem dúvida que o que aconteça a nós por vontade dele é o melhor que poderia acontecer, e há de nos ser tão agradável, que sejamos levados a dizer junto com o Cristo: “Não hei de beber eu o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18, 11), e com o Apóstolo: “Em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou” (Rm 8, 37). Como consequência, quem não pode deixar sua cruz de lado sem pecar deve fixar o pensamento, não no sofrimento presente, senão na coroa futura que os aguarda, cuja possessão compensará abundantemente as aflições e dores desta vida. “Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18), foi o que disse a si São Paulo, e sobre Moisés ajuizou que ele preferiu “participar da sorte infeliz do povo de Deus, a fruir dos prazeres culpáveis e passageiros. Com os olhos fixos na recompensa, considerava os ultrajes por amor de Cristo como um bem mais precioso que todos os tesouros dos egípcios” (Hb 11, 25-26).
Como consolação daqueles que são forçados a carregar todo o peso da cruz ao longo de muitos anos, não será fora de propósito o breve relato da história de duas almas que não perseveraram, e deparam-se com uma cruz muito mais pesada, e eterna. Quando Judas o Traidor entrou em considerações sobre a enorme e destestável traição, sentiu-se incapaz de tolerar a vergonha e o embaraço de se reencontrar com os apóstolos ou discípulos do Cristo, por isso enforcou-se a si com uma corda. Estava ele mui distante de escapar da vergonha temida, ao contrário apenas mudou de cruz por outra mais pesada. Será maior seu embaraço quando, no dia do Juizo Final, houver de se postar diante de todos os anjos e homens na condição de convicto traidor do Senhor, senão que também como assassino de si mesmo. Que necessidade era aquela de evitar a vergonha perante uns poucos do rebanho do Cristo, que ser-lhe-iam bons e mansos – à imitação do Senhor – e o confiariam à misericórdia do Redentor, para ter de sofrer a infámia e a ignomínia, que padecerá diante dos olhos de todas as criaturas, como traidor de Deus e suicida. Outro exemplo é tomado dum sermão panegírico de São Basílio acerca dos quarenta mártires. Durante a perseguição do imperador Licínio, condenaram quarenta soldados a morte por sua inabalável crença no Cristo. Ordenaram fossem eles metidos desnudos durante a noite num lago congelado, ganhando eles sua coroa por meio da lenta agonia do congelamento. Ao lado do lago congelado, prepararam uma cuba de água aquentada, onde quem negasse a fé estava livre para se requentar. Dos mátires trinta e nove dirigiram os pensamentos para a felicidade eterna que os aguardava, sem se importarem com o sofrimento atual, que tão logo cessaria; deste modo, perseveravam na fé, e tornavam-se merecedores de receber das mãos de Jesus Cristo a coroa de glória eterna. Todavia um dentre eles ponderou e considerou os tormentos, e não perseverou, e se lançou dentro da cuba aquecida. Logo que o sangue recomeçou a esvair-se dos seus membros congelados, expirou sua alma que, marcada com a desgraça da traição em face de Deus, se precipitou em direitura para tormentos do inferno. Querendo fugir da morte, encontrou-a esse desgraçado, substituindo a cruz leve e passageira por uma insuportável e eterna. Avistamos com os imitadores desses dois homens miseráveis entre os que abandonaram a vida religiosa, que afastaram de si o jugo suave e o peso leve. Quando menos esperarem, hão de se aperceber atados como escravos ao jugo pesado dos inúmeros apetites insasiáveis, e esmagados sob a carga ignominiosa da multidão de pecados. Quem se nega a carregar a Cruz do Cristo, obriga-se a carregar as ligaduras e cadeias de Satanás.
Tradução: Permanência